Zona de interesse está em exibição no cinema do IMS Paulista durante o mês de fevereiro.
Alguns críticos argumentaram que Zona de interesse falha em mostrar os horrores do campo de concentração de Auschwitz, comandado pelo protagonista do filme, o oficial nazista Rudolf Höss (interpretado por Christian Friedel). No entanto, eu considero que esse seja precisamente o acerto fundamental do filme de Jonathan Glazer, ou até mesmo a sua razão de existir.
Em contraste com centenas de dramas, documentários e séries sobre o Holocausto, que se deleitam quase sadisticamente em retratar as torturas físicas e psicológicas infligidas aos prisioneiros, em Zona de interesse todo o horror ocorre do outro lado do muro que separa o campo de extermínio da propriedade próspera em que Höss vive tranquilamente com a família, conspira com seus colegas e socializa com os amigos.
Fora do enquadramento
A barbárie se manifesta principalmente fora do enquadramento, na engenhosa trilha sonora, repleta de gritos, lamentos, ruídos e música inquietante. Zona de interesse, de certa forma, é um estudo sobre a alienação, sobre a capacidade de evitar o horror, seja por interesse próprio ou por autodefesa. Nesse aspecto, é semelhante a A garota radiante. No filme de Sandrine Kiberlain, uma jovem judia parisiense vive alheia ao pesadelo terrível que a cerca durante a ocupação nazista. Aqui, uma realidade artificial e escapista se constrói em torno do próprio carrasco.
A desgastada expressão “banalidade do mal” adquire concretude no cotidiano da família Höss, expressa, por exemplo, nos diálogos em que a esposa do oficial nazista comenta com a mãe ou uma amiga que as criadas são “gente daqui” (ou seja, polonesas) e que os judeus ficam “do outro lado do muro”. Ou na decisão alegre e despreocupada de escolher roupas evidentemente tiradas das prisioneiras de Auschwitz. Ou ainda nos detalhados planos que um engenheiro apresenta a Höss para otimizar o rendimento dos fornos crematórios. Não é necessário mostrar os fornos em funcionamento. Para o espectador minimamente informado e sensível, os croquis bastam.
Flores e cinzas
Uma das criadas, ao que parece, furta maçãs e outros alimentos da casa para escondê-los nos arbustos podados regularmente por prisioneiros do campo para a produção de belas flores. Aliás, se houver uma imagem que resuma o significado do filme, é a dessas delicadas flores adubadas com as cinzas provenientes dos fornos crematórios. Brutalidade e jardim, como no verso de Torquato Neto, por sua vez inspirado em Oswald de Andrade.
As ações da boa criada são mostradas de maneira estilizada, com imagens negativas, enquanto Höss conta histórias infantis para embalar o sono da filha. A introdução ocasional de imagens oníricas no meio do relato cotidiano é apenas um dos recursos que causam incômodo e perturbação. O primeiro deles é a tela escura nos minutos iniciais, assombrados pela música dissonante e sinistra da compositora não binária britânica (e judia) Mica Levi. No meio do filme, há um procedimento semelhante, desta vez com a tela vermelha sugerindo ao mesmo tempo a flor e o sangue.
Para experimentar (esteticamente, é claro) a monstruosidade nazista, não é necessário ver o fogo consumindo corpos, o ferro dilacerando a carne. Muitas obras já ofereceram isso, com coragem ou sensacionalismo, indignação ou oportunismo. Baseado no romance do escritor britânico Martin Amis, Zona de interesse aborda a tragédia de outra maneira, de outro ângulo, não menos inquietante, não menos humanista e civilizatório.
Sem glamour
Não se pode acusar Jonathan Glazer de “humanizar” o carrasco. Não há glamour, simpatia em sua figura e em suas ações. Não se procura identificação do público com ele ou com qualquer outro personagem. Todos são filmados a certa distância, sem closes, sem “pensamentos íntimos”. Nem mesmo as crianças têm o dom de cativar o espectador. Em uma das raras cenas em que os meninos aparecem sozinhos, longe dos adultos, um deles prende o irmão menor em uma estufa. É um aprendiz de algoz.
O espectador desatento pode até demorar a reconhecer na esposa de Rudolf Höss a atriz Sandra Hüller, de Anatomia de uma queda, em parte devido à extraordinária capacidade de transformação da artista, mas também pelos enquadramentos relativamente distantes. Não há risco algum de uma pessoa mental e espiritualmente sã se identificar com aquela gente.
Por fim, Zona de interesse recebeu em Cannes o grand prix e o prêmio da crítica. Agora está concorrendo a cinco Oscars: melhor filme, direção, filme estrangeiro, roteiro adaptado e som.
https://ims.com.br/blog-do-cinema/zona-de-interesse-por-jose-geraldo-couto/