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A magia do dia a dia

Nos últimos tempos, Wim Wenders não havia lançado uma obra tão marcante como o filme Dias Perfeitos, que atualmente está em pré-estreia em diversas cidades do Brasil e concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro, representando o Japão.

Apesar de sua aparência simples, o filme é repleto de significados e sensações. A história narra alguns dias na vida de Hirayama, um homem solitário e reservado de meia-idade que trabalha como faxineiro de banheiros públicos em Tóquio.

A rotina metódica de Hirayama é retratada através de cenas repetitivas, com pequenas alterações de enquadramento: ele acorda ao som de uma vizinha varrendo a calçada, escova os dentes, rega suas plantas, sai para aproveitar o sol da manhã, toma um café em lata, entra em seu pequeno carro e segue para o trabalho.

Ao longo do filme, percebemos que essa rotina prosaica é pontuada por descobertas, afeto e momentos de iluminação. Hirayama observa, pela fresta de sua janela, a copa de uma árvore balançando ao vento, banhada pela luz do sol. Por meio dessas frestas do cotidiano, emerge uma poesia de contemplação, imersão no movimento da vida e comunhão com o mundo.

Hirayama cultiva gostos considerados anacrônicos, como tirar fotos com uma câmera analógica e ouvir músicas internacionais das décadas de 1960 e 1970 em fitas cassetes. No entanto, apesar de seus gostos peculiares, ele não está desconectado de seu tempo. Sua capacidade de viver plenamente o momento presente é admirável.

A relação de Hirayama com os outros personagens é, na maioria das vezes, silenciosa: um velho dançarino que abraça árvores, um monge guardião de um parque urbano, um menino que ele encontra sozinho em um banheiro público, e uma mulher solitária comendo em um banco de jardim.

Em meio a essa narrativa episódica, existe um episódio singelo que parece ser crucial para compreender a postura de Hirayama diante da vida. Ele encontra um papel com o começo de um jogo da velha, escondido atrás de um vaso sanitário, e decide participar. Essa disposição para o lúdico, a abertura para compreender o ser humano e a porosidade à poesia do cotidiano configuram a maneira de ser no mundo do protagonista.

Além disso, a capacidade de captar o fluxo do cosmo em cada instante, de maneira intuitiva e não intelectual, está em sintonia com o espírito do haicai, assim como o cinema límpido e rigoroso de Yasujiro Ozu, uma grande inspiração para Wim Wenders.

Homenageando Ozu, o protagonista de Dias Perfeitos tem o mesmo nome do personagem principal do último filme do cineasta japonês. Além disso, a forma como o filme retrata as pequenas e grandes epifanias é semelhante à abordagem de “Paterson” (2016), de Jim Jarmusch, que também se concentra na rotina diária de um trabalhador aberto ao encanto das pequenas coisas.

Em Dias Perfeitos, as descobertas são intensificadas pelo uso inspirado da música, com canções de Lou Reed, The Animals, Otis Redding e Nina Simone, entre outras. A paixão de Hirayama pelos jogos de luz e sombra se expressa em suas fotos e em seus sonhos em preto e branco.

Esses elementos atemporais iluminam a essência do cinema, que consiste em jogos de luz e sombra, sonhos e vestígios do dia.

https://ims.com.br/blog-do-cinema/dias-perfeitos-por-jose-geraldo-couto/