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As câmeras de Rodolfo Bodanzky no Instituto Moreira Salles

A realização da Retrospectiva Jorge Bodanzky no Cinema do Instituto Moreira Salles resultou na revisão e descoberta de um vasto acervo de imagens que revelam muito sobre as últimas seis décadas da vida no Brasil. A imagem como reflexo político da cultura também revela o próprio observador que as registrou, Jorge Bodanzky.

Essa coleção de filmes, que será exibida ao longo de 2024 em nossas salas de cinema em São Paulo e Poços de Caldas, é fruto do projeto de retrospectiva cinematográfica planejado em conjunto com a exposição “Que país é este? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira, 1964-1985”.

A relação de Bodanzky com as imagens que ele próprio filmou e fotografou, bem como a preservação desse material que ele guardou, é incomum no cenário cinematográfico brasileiro. Muitos acervos foram perdidos no Brasil, e muitos continuam a se perder. Poucos cineastas têm uma relação tão íntima com sua própria produção, sendo o artista seu próprio arquivista.

A Coleção Jorge Bodanzky foi adquirida em 2013 pelo IMS através da área de Fotografia Contemporânea, coordenada por Thyago Nogueira. Esse material foi digitalizado a partir de diversos formatos técnicos que abrangem décadas de trabalho em cinema e fotografia.

As conexões profissionais de Bodanzky na Alemanha, onde estudou na Escola de Design de Ulm (Institut für Filmgestaltung an der HFG Ulm) e trabalhou como cameraman na TV alemã, destacam o profissionalismo de seu trabalho que se uniu ao desejo de registrar o Brasil com os recursos disponíveis.

Uma parte significativa de sua trajetória de anos foi dedicada à Amazônia, tanto nas imagens de sua imensa geografia quanto na paisagem humana e política da região.

O arquivo hoje guardado no IMS pode ser encarado como uma série de álbuns pessoais, que apresentam uma visão singular do país, capturada em formatos que vão desde a película Kodak 16 mm e super-8 até a fotografia 35 mm, realizada em grande parte com sua câmera Pentax. Algumas dessas fotos fazem parte da exposição.

Além disso, há as fitas de vídeo magnéticas e digitais das décadas seguintes. Ao observarmos as imagens capturadas por Bodanzky ao longo da vida, percebemos que seu desejo de filmar permaneceu constante. Atualmente, ele utiliza um iPhone como câmera.

A diferença de textura em seus arquivos de imagens entre o material 16 milímetros, viabilizado pelo trabalho profissional na Alemanha, e o formato doméstico super-8, que Bodanzky adquiriu no início dos anos 1970, é evidente. Ele sempre se referiu ao super-8 como seu “caderno de notas”, sendo que sua câmera Nizo era silenciosa.

Com esse acervo em mãos, o Cinema do IMS encomendou montagens especiais de curtas-metragens, realizadas por Ewerton Belico e os Irmãos Pretti. Esses filmes abrirão nossas sessões especiais dedicadas aos longas-metragens que são frutos da obra de Bodanzky.

As obras comissionadas são exercícios de edição que reorganizam a trajetória de Jorge Bodanzky em documentos de som e imagem, montados em frentes temáticas sugeridas: “Bodanzky repórter, O viajante, sua relação com a Amazônia, Imagens de família e Modos de ver”. Durante o processo, procuramos equilibrar a visão dos autores convidados e a personalidade original de Bodanzky, o criador desse arquivo.

Os cinco curtas remixados por Belico e pelos Irmãos Pretti indiretamente ilustram as dificuldades históricas na preservação de imagens brasileiras. O super-8, formato de filmagem caseira adotado por famílias de classe média alta no Brasil no final dos anos 1960 e ao longo da década de 1970, continua sendo um tesouro de informações registradas, demandando um projeto nacional abrangente de pesquisa, digitalização e conservação.

Durante a construção desta retrospectiva e ao visualizar o arquivo Bodanzky, o cineasta informou estar trabalhando em um novo filme gerado pela revisão de suas imagens arquivadas. “Um olhar inquieto” (título provisório) será uma revisão em primeira pessoa de uma vida registrada.

Nesse arquivo pessoal, existe uma ligação clara com os filmes. As imagens registradas em super-8 estabelecem uma conexão entre o desejo de registro e a evolução de um projeto, como aconteceu com “Iracema: uma transa amazônica” (1974), “Gitirana” (1976) e “Terceiro milênio” (1981). Os dois primeiros são co-direções de Bodanzky com Orlando Senna, enquanto o terceiro foi co-dirigido por Wolf Gauer.

Os três filmes foram produzidos em colaboração com a rede alemã de TV ZDF. O super-8 levou ao 16 mm e, no caso de “Iracema”, finalmente ao 35 mm, permitindo que o filme circulasse internacionalmente, inclusive sendo selecionado na Semana da Crítica do Festival de Cannes de 1975.

A exibição este ano no Cinema do IMS da versão restaurada de “Iracema: uma transa amazônica” traz uma dupla alegria. O filme celebra 50 anos, desafiando a distinção entre “ficção” e “documentário” em um cenário cinematográfico brasileiro ainda influenciado pelo Cinema Novo dos anos 1960 e pela pornochanchada dos anos 1970. Em 1974, o país estava sob a censura cinematográfica de filmes estrangeiros e nacionais.

“Iracema”, com suas imagens de um Brasil transamazônico e desenvolvimentista desaprovado pelo governo militar, foi mais apreciado no exterior do que no Brasil, que boicotou o filme (uma coprodução alemã) e não o reconheceu como sendo brasileiro.

Para o Cinema do IMS, rever a obra de Bodanzky nas salas de cinema vai além da programação. O desafio ao programar produções brasileiras de repertório é compreender onde estão e em que estado se encontram os títulos, uma das partes mais complexas desse trabalho.

O esforço de revisão técnica, digitalização de filmes de Bodanzky e restaurações foi resultado da união entre as áreas de Cinema e Fotografia Contemporânea no IMS, do Restauro da Obra de Jorge Bodanzky, conduzido por Alice de Andrade, e do entusiasmo dos cineastas Walter Salles e João Moreira Salles. Alice de Andrade já havia restaurado a obra de seu pai, Joaquim Pedro de Andrade, que foi integralmente revista na programação do Cinema do IMS.

A utilização de novas tecnologias para escaneamento e restauração digital se tornou uma realidade viável no trabalho de programação e curadoria. Nos últimos anos, essa tecnologia tornou-se mais acessível financeiramente, com equipamentos e softwares de imagem mais disponíveis no Brasil.

É possível perceber que, mesmo em meio a momentos sombrios para a produção audiovisual e a Cinemateca Brasileira durante os governos anteriores, houve uma maior conscientização sobre a importância da preservação do audiovisual brasileiro. Hoje, há uma discussão mais ampla sobre o tema.

A programação de filmes de Jorge Bodanzky, ou que contaram com sua participação, montada em parceria com a Cinemateca Brasileira, a Cinemateca do MAM Rio, o CTAv, o Arquivo Nacional, o MIS de São Paulo e a ZDF, destaca títulos como “Os Muckers, Jari, Igreja dos oprimidos e Caminhos de Valderez”, valorizando o esforço dessa curadoria.

Diante de tantas imagens guardadas e revisitadas no cinema e na obra de Jorge Bodanzky, destaco uma descoberta pessoal: o filme fascinante sobre o Brasil que é “Terceiro milênio”. Apresentar o filme nesta curadoria, após a restauração na Alemanha a partir dos elementos originais em negativo 16 mm, é uma oportunidade única.

Com 93 minutos de duração, o filme traz a jornada de um político brasileiro, o senador Evandro Carreira, pela Amazônia de 1980, via rio Solimões, perto da fronteira com o Peru. Bodanzky e Gauer acompanham o senador, revelando não apenas uma versão brasileira genuína de Ulisses, mas também elementos de Amaral Neto e Odorico Paraguaçu.

As referências não conseguem capturar toda a complexidade e autenticidade de Evandro Carreira diante da câmera, sua abertura para as diferentes realidades humanas e a vasta diversidade cultural presente no Brasil. O político transmite uma compreensão profunda do país e da Amazônia, incorporando todos os aspectos positivos e negativos do poder político no Brasil.

Evandro é um documento vivo dentro do filme. Um homem branco brasileiro com algum poder político, representando uma geração formada nas décadas de 1940 e 1950. Mesclando vocabulário culto com uma postura marcante, ele interage com seus eleitores de forma típica da política. Ele destaca a distância entre a Amazônia e Brasília, descrevendo a capital como um “cemitério de almas”.

O filme retrata um Brasil cru, com Evandro Carreira representando todas as contradições presentes no sistema político do país. Suas palavras sobre a Amazônia, comparando-a a uma Polinésia e destacando sua riqueza natural, ressoam de forma única em um contexto brasileiro. Suas expressões e ações refletem as desigualdades e complexidades da sociedade.

A exibição de “Terceiro milênio” em versão restaurada para uma nova geração de espectadores se torna uma oportunidade de compreender a importância desse trabalho. Os filmes da programação serão apresentados em película ou em DCP, nas melhores condições de cópias disponíveis, fruto do trabalho de preservação de Debora Butruce e da colaboração das instituições parceiras.

Diante de todo esse esforço, podemos afirmar que a revisão da obra de Jorge Bodanzky é um passo importante para a preservação e valorização do patrimônio audiovisual brasileiro. A exibição desses filmes nos cinemas do IMS representa um mergulho na história do cinema nacional e na rica trajetória desse renomado cineasta.

https://ims.com.br/blog-do-cinema/mostra-as-cameras-de-jorge-bodanzky-por-kleber-mendonca-filho/