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As tonalidades da burrice – Instituto Moreira Salles

O filme de ficção americana, dirigido por Cord Jefferson, ainda não teve sua estreia nos cinemas brasileiros, mesmo concorrendo a cinco Oscars, incluindo o de melhor filme. No entanto, desde a semana passada, está disponível no Amazon Prime e é altamente recomendado para ser assistido.

Baseado no livro Erasure (2001), de Percival Everett, o filme é uma crítica contundente à forma como a indústria cultural dos Estados Unidos absorve, padroniza e distorce as questões raciais, muitas vezes com a colaboração dos próprios afro-americanos.

Thelonious “Monk” Ellison (Jeffrey Wright) é um escritor e professor universitário negro que escreve romances altamente sofisticados, mas pouco lidos. Ele perde o emprego na universidade por se recusar a censurar livros do passado pelo uso de palavras consideradas politicamente incorretas, como nigger. Uma de suas alunas brancas chega a acusá-lo de racismo.

 

Desafios dos estereótipos raciais

O mercado, a mídia, os jovens leitores, todos esperam que Monk produza uma literatura mais “negra”, ou seja, que aborde temas como crimes, drogas, brutalidade policial e a vida difícil nos guetos. No entanto, Monk vem de uma família de médicos de classe média e não se identifica com esses estereótipos. Pressionado pela necessidade de dinheiro e incentivado por seu agente, ele acaba cedendo e escrevendo um livro cheio de linguagem vulgar, palavrões e violações, sob o pseudônimo de Stagg R. Leigh – supostamente um ex-detento fugitivo da justiça.

Em uma nota à parte, é irônico que os mesmos racistas que atacam e censuram o romance de um autor negro (como em O avesso da pele, de Jeferson Tenório) por conter linguagem considerada “vulgar e obscena” são os mesmos que esperam esse tipo de linguagem de Monk ou de Stagg R. Leigh em Ficção americana. Fim da nota.

Em sua estreia como diretor, o experiente roteirista negro Cord Jefferson utiliza com maestria o humor e o desconforto gerados pela dualidade de seu protagonista. Enquanto lida com seus próprios problemas pessoais e familiares – como a morte do pai, o Alzheimer da mãe, os conflitos com o irmão gay (Sterling K. Brown) e o relacionamento com uma advogada (Erika Alexander) – o refinado Monk precisa dar vida ao seu alter ego grosseiro, autor do explosivo My pafology, rebatizado de Fuck para apelar comercialmente.

Com diálogos perspicazes e um humor visual quase sempre certeiro, Ficção americana desafia os clichês comumente explorados pela cultura mainstream americana e internacional ao abordar a realidade dos afro-americanos.

Embora toda a narrativa seja centrada em sua perspectiva, Monk não escapa ileso das críticas do filme. Em uma cena, por exemplo, após afirmar que “não acredita em raça”, ele é ignorado por um taxista em favor de um passageiro branco apenas alguns metros à frente.

 

O poder da ficção

Em um dos momentos mais memoráveis do filme, o escritor está sentado diante do computador, criando seu romance “autenticamente negro”, enquanto seus personagens, dois marginais, discutem agressivamente à sua frente, aguardando suas orientações para o diálogo e os gestos. É como se o escritor fosse um diretor de teatro ou cinema. Essa cena lembra, de certa forma, o brilhante Providence (1977), de Alain Resnais, onde parte da narrativa se passa na mente do protagonista escritor.

O significado mais profundo do filme talvez esteja contido em seu próprio título. Em uma cena crucial, Monk se indigna ao ver seus romances “sérios” classificados na sessão de “estudos afro-americanos” de uma livraria. O atendente justifica que é porque o autor é negro. Indignado, Monk leva os livros para a seção de “ficção americana” com orgulho.

Mais do que uma questão racial, o filme questiona a tendência contemporânea de valorizar a literatura como testemunho, denúncia e “representatividade”, em detrimento da imaginação e da estética. Ficção americana aposta, acima de tudo, no poder da ficção. É nesse aspecto que reside sua posição contra o racismo – e contra a ignorância em todas as suas formas.

https://ims.com.br/blog-do-cinema/ficcao-americana-por-jose-geraldo-couto/