O filme mais disputado da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo certamente atendeu às expectativas. Estamos falando de Ainda estou aqui, dirigido por Walter Salles, que teve todas as sessões lotadas, inclusive as da imprensa. O longa será lançado nos cinemas a partir do dia 7.
A trama gira em torno da história de Eunice Paiva (interpretada por Fernanda Torres/Fernanda Montenegro), viúva do advogado e deputado cassado Rubens Paiva (Selton Mello), que foi morto sob tortura pela ditadura militar no início de 1971. O roteiro, baseado no livro homônimo de memórias de Marcelo Rubens Paiva, escrito por Murilo Hauser e Heitor Lorega, recebeu prêmios em Veneza.
O filme acerta ao recriar com sensibilidade e precisão a época em que se passa a história. A ambientação consegue uma naturalidade quase documental, seja nas cenas de praia ou nas ruas, repletas de carros como fuscas e Opalas característicos dos anos 70. Esse cuidado nas imagens, resultado do trabalho conjunto de fotografia e direção de arte, envolve o espectador na trama, que aborda a tragédia de uma mulher, de uma família e de um país.
Uma casa, um país
No centro de tudo está a casa da família Paiva, uma residência espaçosa de frente para o mar do Leblon. Esse espaço acolhedor ocupado por Eunice/Rubens e seus cinco filhos é invadido e marcado pela presença de policiais à paisana, que vêm buscar o ex-deputado e vigiar o restante da família. Desde Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, não se via uma residência tão protagonista.
A invasão acontece quando o espectador já está familiarizado com o ambiente, de modo a sentir também a sensação de invasão e violência. Essa família específica representa ao mesmo tempo todas as famílias.
Walter Salles consegue expor o que há de universal em uma história particular, transformando o drama dos Paiva em uma metáfora do drama nacional. E é Eunice Paiva, interpretada com maestria por Fernanda Torres e, na velhice, por Fernanda Montenegro, que conduz esse drama como uma heroína discreta e resiliente.
Além da narrativa realista clássica, dominada com maestria por Walter Salles, o filme apresenta momentos de poesia audiovisual notáveis.
Várias cenas são exemplos disso: desde a primeira cena, com Eunice boiando no mar enquanto um helicóptero surge no horizonte, até a simbologia por trás do último dente de leite da filha mais nova. O filme consegue explorar as relações familiares de forma profunda e tocante.
Uma cena em particular se destaca: Eunice, em uma das noites na prisão, ouve um prisioneiro na cela ao lado cantando o samba “Agoniza mas não morre”, de Nelson Sargento. Esse canto assume uma dimensão de resistência em meio à escuridão, tornando-se quase metafísico.
Existem muitos outros aspectos a serem destacados, desde o uso criativo das imagens em super-8 captadas pela filha mais velha até a trilha sonora variada, passando pelo elenco coeso. Entretanto, na maior mostra de cinema do país, é importante também dar atenção a outros títulos que não devem passar despercebidos. Abaixo, alguns deles:
Destaques da Mostra
Falando com rios (Irã/Reino Unido), de Mohsen Makhmalbaf. Um diálogo entre um iraniano e um afegão expõe a tragédia histórica desses dois países, marcados pelo fanatismo religioso e pela ganância das potências.
Grand tour (Portugal/Itália/França), de Miguel Gomes. Um funcionário britânico em uma viagem pelo Oriente mistura os tempos para abordar o colonialismo e embates culturais em diferentes países.
Através do fluxo (Coreia do Sul), de Hong Sang-soo. O filme acompanha o fluir do tempo na vida de uma professora de artes e seu tio ator/diretor de teatro.
Os enforcados (Brasil), de Fernando Coimbra. Um thriller policial que mistura sátira política enquanto um casal tenta sobreviver em meio a um Rio conflagrado.
Mário de Andrade, o turista aprendiz (Brasil), de Murilo Salles. Baseado nas anotações de Mário de Andrade, o filme recria de forma criativa a viagem do escritor pela Amazônia em 1927.
Oito cartões-postais da utopia (Romênia), de Radu Jude. Um documentário que traça a história da Romênia com comerciais de TV absurdos produzidos no país ao longo dos anos.
Ernest Cole: achados e perdidos (França/Eua), de Raoul Peck. Documentário sobre o fotógrafo Ernest Cole, que registrou a opressão do apartheid na África do Sul e as comunidades negras nos EUA.
Serra das almas (Brasil), de Lirio Ferreira. Um grupo em fuga se refugia no sertão, explorando as tensões sociais em um contexto contemporâneo.
https://ims.com.br/blog-do-cinema/ainda-estou-aqui-por-jose-geraldo-couto/