Alguns filmes se destacam mais pelo contexto histórico-social em que estão inseridos do que pelo enredo que apresentam. Talvez esse seja o caso de Um dia nossos segredos serão desvendados, dirigido por Emily Atef e ambientado em 1990 em uma pequena cidade rural do leste da Alemanha, logo após a reunificação. Afinal, as grandes histórias são basicamente as mesmas ao longo do tempo; o que muda é o cenário.
O enredo gira em torno de um triângulo amoroso formado por um casal jovem e um homem muito mais velho. Maria (Marlene Burow) está vivendo na fazenda da família de seu namorado, os Brendel. Ao invés de frequentar a escola para concluir seus estudos, ela passa o tempo vagando pelos campos e lendo Dostoievski. Seu namorado, Johannes (Cedric Eich), planeja estudar artes em Leipzig e se tornar um fotógrafo profissional. Um casal cheio de vida, amor e sonhos, em uma Alemanha renascida após a queda do muro de Berlim.
Mas a tentação está próxima. No terreno ao lado, Henner (Felix Kramer), um quarentão rude e solitário, vive junto a um estábulo, cuida de cavalos e tem a reputação de ser um sedutor.
Reunificação dolorosa
Nas entrelinhas desse enredo quase cotidiano – porém desenvolvido com elegância e sensibilidade – podemos vislumbrar sutilmente as tensões e contradições daquele momento histórico crucial, e a postura de cada indivíduo diante dele. Enquanto o drama erótico-amoroso se desenrola quase sem palavras, em gestos e olhares significativos, é nos diálogos corriqueiros e nas atividades do dia a dia que uma página fundamental da história alemã é revelada.
O trabalho disciplinado, quase militar, dos homens e mulheres da família Brendel na colheita do trigo sugere a coletivização disciplinada das atividades na antiga Alemanha Oriental, que foi abalada de várias maneiras pela reunificação. Aqui e ali, surgem, como que casualmente, sinais desse abalo.
A mãe de Maria perdeu o emprego quando a fábrica em que trabalhava fechou, “por causa da união monetária”. “Nossos negócios não são competitivos. Entrar na concorrência global do dia para a noite foi uma loucura”, reclama Siegfried (Florian Panzner), pai de Johannes. Por outro lado, a avó de Maria se encanta com o fato de que “não precisa mais bater o creme de leite; agora ele vem em lata”.
O filho pródigo
A chegada de Hartmut (Christian Erdmann), irmão de Siegfried, que visita a mãe, os irmãos e sobrinhos depois de décadas vivendo no lado ocidental, intensifica a fratura familiar e social.
Sob o olhar desconfiado e ressentido dos irmãos, Hartmut conta sua trajetória de sucesso pessoal, de operário da construção a engenheiro e empresário. No entanto, a esposa de Hartmut precisa ficar em casa cuidando das crianças porque a escola da caçula é de meio período e não tem creche, o que surpreende os Brendel, acostumados com a educação integral fornecida pelo estado.
Uma cena em particular destaca o contraste entre dois mundos que se chocam repentinamente. Em um passeio pela cidade com Maria, o taciturno Henner pede um café à garçonete, que pergunta: “Regular? Com leite? Cappuccino? Espresso?” Atordoado e desconfortável, ele pede uma cerveja. “Pilsen, ale ou de trigo?”, ela pergunta. “Uma cerveja pequena”, ele murmura em resposta. “Garrafa ou chope?”, insiste a garçonete. O mundo capitalista, com suas infinitas opções, convites e tentações, é um inferno do qual Henner quer escapar o mais rápido possível e voltar aos seus cavalos.
Percebe-se, então, que o tema mais amplo da complexa unificação das Alemanhas permeia também a relação entre Henner e Maria. Ela, com toda a vida pela frente e todas as possibilidades abertas. Ele, ligado ao seu pequeno mundo, sua ligação ancestral com a terra e os animais. Não vamos revelar o desfecho desse dilema aqui.
Os animais, aliás, desempenham um papel significativo no drama. O primeiro encontro entre os dois amantes ocorre quando os rottweilers de Henner avançam em direção a Maria e ele os controla com seus comandos. Em outro momento, para ter uma momento privado com o amante longe dos olhares indiscretos, Maria se esforça para cavalgar, algo que nunca havia feito antes.
Instinto e consciência
A interação entre o instinto animal e a consciência humana, entre brutalidade e delicadeza, natureza e cultura, permeia a relação entre Henner e Maria. Antes que possamos interpretar isso como um esquematismo, o rústico Henner se revela um leitor sensível do poeta austríaco Georg Trakl, paixão que herdou de sua mãe alcoólatra.
Há também o tema do olhar, ou do ponto de vista, destacado pela inclinação de Johannes pela fotografia. Da casa dos Brendel, é possível ver o estábulo de Henner, e vice-versa, e a diretora Emily Atef transforma essa circunstância visual em uma questão moral, dependendo de quem está olhando e em que direção.
Em uma cena de suspense contido, o apaixonado Johannes, fotografando a propriedade de Henner para um ensaio, captura sem perceber a silhueta de sua namorada na janela do amante – um acidente fortuito com grande potencial dramático, assim como a foto central de Blow up (ou o conto de Cortázar “Las babas del diablo”, que inspirou a obra-prima de Antonioni). O que o filme de Emily Atef faz com esse potencial é algo que o espectador terá que descobrir por conta própria. Eu não vou contar.
Dois gigantes
Na semana passada, faleceram dois personagens fundamentais da arte cinematográfica, o diretor e produtor norte-americano Roger Corman e o ator brasileiro Paulo César Pereio. Muito foi dito sobre eles nos últimos dias; não há necessidade de repetir o que já foi dito. Apenas destaco o que considero a maior virtude de cada um deles.
Corman era grande não apenas pelas inúmeras estrelas que ele lançou, pelas carreiras que ele impulsionou, mas também por chamar a atenção para o aspecto de entretenimento popular que o cinema carrega desde o seu surgimento como atração de feira. Seus extraterrestres, vampiros, fantasmas, seres mutantes e plantas carnívoras assustaram e fizeram rir várias gerações de espectadores e continuam inspirando criadores até hoje, como o norte-americano Tim Burton e o brasileiro Ivan Cardoso, além de uma nova geração de cineastas ao redor do mundo. Além disso, ele era conhecido por ser uma pessoa simpática, sem pretensões, divertida e afável, ao lado de poucos de seus contemporâneos: George Romero, Sergio Leone, Agnès Varda, Dario Argento. Indivíduos que gostaríamos de ter como amigos.
Pereio, por sua vez, tinha como principal trunfo a ironia com que encarava seus personagens e a si mesmo. Seu enorme talento, sua precisão vocal e gestual o tornavam um ator eminentemente cinematográfico, mas do cinema moderno, consciente de sua própria fabricação, de seu caráter fictício, onde cada explosão dramática era temperada pela autocrítica humorística, como se, no auge do drama ou da comédia, ele piscasse para o espectador, sugerindo: é tudo uma brincadeira, uma mentirinha.
Pensando bem, os dois – Corman e Pereio – não estavam tão distantes um do outro.
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