Depois de uma longa noite de premiações, nada melhor do que um filme turco envolvente, com três horas de duração, repleto de diálogos instigantes, dilemas morais e situações desconfortáveis. Estou me referindo ao incrível filme “Ervas secas”, dirigido por Nuri Bilge Ceylan. O longa foi destaque na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado e agora está chegando aos cinemas nesta quinta-feira.
A trama começa com a neve. Uma van cruza lentamente a tela em um plano horizontal marcante (1:2,39), deixando descer um homem, quase imperceptível na imensidão branca. Ele avança em direção à câmera, revelando seu rosto coberto por um capuz. É em torno desse homem, Samet (Deniz Celiloglu), que giram os temas explorados no filme.
Conflito com a realidade local
Samet é um professor de artes para pré-adolescentes em uma escola pública de um vilarejo no centro da Turquia. Ele anseia por deixar para trás aquela província que considera atrasada e mudar-se para Istambul, que para ele é uma espécie de refúgio semelhante a Moscou em “Três irmãs”, de Tchekhov. Ele é um homem em desarmonia, desconfortável com sua situação atual.
Ceylan explora com maestria esse desconforto, destacando as tensões presentes nas relações de Samet: com os alunos, colegas, amigos, o vilarejo, o país e, principalmente, com a vida em si.
Em meio a diversos temas e subtemas, duas situações se destacam: a relação ambígua de Samet com uma aluna, Sevim (Ece Bagci), que resulta em uma acusação de assédio, e o triângulo amoroso entre ele, seu amigo de casa, Kenan (Musab Ekici), e uma professora de inglês que sofreu um acidente, Nuray (Merve Dizdar, vencedora do prêmio de Melhor Atriz em Cannes).
Mais do que simples testes morais, onde o protagonista expõe seus dilemas éticos, as situações apresentadas revelam diversas camadas da complexidade humana.
Em um dos diálogos marcantes do filme, o dono de uma casa de chá fala sobre uma desavença com um vizinho. Ele conta que curou duas vacas do vizinho e, mesmo assim, o vizinho atirou em seu cachorro. Ao ser questionado por Samet o motivo, ele responde: “Porque ele é humano”. A ação não foi desumana, mas precisamente humana.
Deslizes e fragilidades
Através de uma sucessão aparentemente aleatória de situações, Ceylan demonstra a fragilidade e vulnerabilidade dos seres humanos que, em determinadas circunstâncias, podem se transformar de humanistas em ditadores, de ingênuos em astutos.
A referência a Tchekhov não foi feita por acaso. O cineasta se inspira no escritor russo para capturar os desvios da alma, os autoenganos e os deslizes dos indivíduos em suas ações mais banais. Em “Sonho de inverno” (2014), Ceylan baseou-se no conto tchekhoviano “A esposa”.
Em termos de estilo, Ceylan mescla longas cenas internas de diálogos, na maioria das vezes em planos fixos, com amplas tomadas externas, onde humanos (pessoas, cavalos, árvores, cachorros) quase se dissolvem na infinita neve. O controle da iluminação é excepcional, alcançando o ápice na sequência em que a luz elétrica falha e uma conversa crucial ocorre sob a luz tremeluzente de um lampião, lembrando a pintura barroca. Da mesma forma, as grandes cenas externas, com crianças brincando no pátio da escola, em meio à neve branca, lembram os painéis de Pieter Bruegel, o Velho.
Samet é um fotógrafo amador, e suas belas imagens documentais trazem ao filme uma autenticidade única, mostrando diferentes aspectos da sociedade turca. Temas como os conflitos políticos e religiosos, a vigilância moral sobre as mulheres, a pobreza e a falta de tecnologia nas áreas rurais e a brutalidade policial e militar permeiam a jornada do protagonista de forma sutil.
Além disso, o filme reserva momentos de pura inspiração, como uma virada metalinguística em meio a uma cena intensa e íntima, que nos lembra que tudo ali é construído, cenário, cinema.
O que realmente importa para Ceylan é o papel de cada indivíduo em meio aos desafios que compõem o mundo. Ignorar ou agir para tentar mudar as coisas, ou ao menos trazer conforto ao próximo. É essa reflexão que a doce e combativa Nuray provoca em Samet e, por consequência, em todos nós.
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