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No é diversão, é cinema!

O uso da técnica também influencia a concepção dos espaços cinematográficos que são criados e desfeitos com as narrativas. Em Ilha, a configuração geográfica do ambiente é fundamental: o espaço do filme é de isolamento e aprisionamento (ninguém escapa da ilha, conforme repetem as personagens). Em cenas como a do bar ou do teste de elenco, é possível perceber um pouco da construção dos espaços públicos com um senso de comunidade (como visto em Café com canela em Cachoeira, BA), porém esses ambientes de convivência social coexistem no filme com espaços mentais ou de solidão, como as cenas de memórias recriadas, becos vazios e casas em ruínas. A ilha é tanto geográfica quanto simbólica. Em Até o fim (2020), Voltei! (2021) e Mugunzá (2022), a criação de um espaço teatral para a encenação é explorada e reinventada. O cenário torna-se praticamente único para cada um desses filmes – a casa da família, a sala de estar, um bar. Reais e abstratos ao mesmo tempo. Como no bar de Mugunzá, que combina balcão, copos, garrafas com destroços, velas acesas e divisórias de madeira.

O processo de intensificação dos filmes como construções cênicas conscientes também é evidente na redução do número de personagens e atores/atriz em cada história, e na transformação da forma de encenação, que incorpora um aspecto teatral. Em Até o fim, a trama trata do reencontro de quatro irmãs, Geralda (Wal Diaz), Rose (Arlete Dias), Bel (Maíra Azevedo) e Vilmar (Jenny Müller), que aguardam (e torcem) pela morte do pai. No distópico Voltei!, a narrativa se passa em um futuro próximo, onde um governo autoritário e violento se estabeleceu na República do Disparate (também conhecida como Brasil) e vemos o reencontro das irmãs Alayr (Arlete Dias) e Sabrina (Mary Dias) com a irmã desaparecida devido à repressão, Fátima (Wal Diaz). Já em Mugunzá, Arlete Dias interpreta Arlete, uma mulher que acabou de perder o amor de sua vida, Joana, e deseja vingar-se dos homens que a machucaram, todos interpretados por Fabrício Boliveira. Embora haja semelhanças na fórmula, cada um desses filmes cria uma dinâmica única, explorando maneiras de expandir o cenário limitado em diferentes ambientes e uma presença próxima e coreografada da câmera. Uma fusão entre uma encenação que assume seu caráter performático para a câmera e uma cuidadosa construção dos elementos cênicos – luz, objetos, figurinos. Uma fusão que é resultado das funções diversificadas dos diretores na maioria dos filmes, com Ary Rosa cuidando dos roteiros e Glenda Nicácio, das direções de arte.

Ao entrarem no circuito ao mesmo tempo, o segundo e o penúltimo filme da dupla – Ilha e Mugunzá – compartilham mais do que a estreia conjunta nas salas de cinema. Ambos os filmes exploram a dualidade entre poesia e violência através da lente da tragédia – em que o desfecho já está traçado desde o início e parece não haver solução. Em Ilha, o destino trágico foi anunciado durante a gravação de um exercício de oficina de cinema, no qual Emerson e Thacle participaram quando crianças. Na oficina ministrada por Henrique anos atrás, as crianças encenam uma perseguição policial, na qual, ao final, Emerson é alvejado e “morto” de mentira. Anos depois, a profecia se realiza: não há escapatória da ilha para aqueles que pertencem a ela. E o sequestro de Henrique termina com a repetição da mesma cena, no mesmo local – Emerson é alvejado várias vezes, mas desta vez de verdade. Não é uma brincadeira, é cinema.

No musical Mugunzá, o que aprisiona Arlete é Cachoeira e os diversos homens que a decepcionaram e perseguiram: seu pai, o pai de seu filho, o prefeito e o prefeitinho. Assim, Cachoeira se torna uma prisão formada por várias camadas de patriarcado. Depois de sofrer violência juntamente com sua companheira, que foi morta, perder os laços com uma cidade que a rejeita e ser expulsa de seu próprio bar, a única opção que resta a Arlete é a vingança. Pois, como ela lembra em seu desamparo, “o destino não é inevitável”. Sua jornada se desenrola em uma série de datas religiosas/espirituais e festas populares: Festa d’Ajuda, Festa de Iemanjá, Festa de São João e Festa da Boa Morte. Cada um desses eventos entra e modifica o cenário do filme e os elementos cênicos. Afinal, Mugunzá é um filme onde os mortos e vivos coexistem, e a fronteira entre visível e invisível torna-se quase transparente. O vermelho do vestido de Arlete e as luzes do cenário saturam tudo ao redor. As canções interpretadas pela personagem (compostas por Moreira para o filme) nos conduzem por suas dores, seus humores e seus desejos.

Emerson e Arlete estão fadados antes mesmo de suas histórias se desenrolarem. Entretanto, são também personagens que ativamente utilizam a violência e a arte como instrumentos de sua vingança. O patriarcado e a estrutura patriarcal (antagonistas recorrentes nos filmes de Ary e Glenda) serão derrotados pelas mãos e ações de suas vítimas – a faca em Ilha, a comida envenenada em Mugunzá. Arlete e Emerson são também aqueles que escolhem recontar sua própria tragédia como arte: o filme dentro do filme em Ilha e a escrita frenética de Arlete em seu caderno em Mugunzá. Recontar, assumir o controle da própria narrativa e fazer com que outros compartilhem de seu destino trágico são também estratégias de suas vinganças.

Palavras ferem, imagens vingam, canções rompem. No entanto, por meio dessa mesma força impactante, essas expressões artísticas transformam e acolhem. Mesmo que seja apenas pela sobreposição do filme projetado que reúne Henrique e Emerson novamente, ou na breve dança de despedida de Arlete com Joana, a amante que se foi. Mesmo que seja apenas no cinema – o cinema dos não escolhidos, mas que nos escolheu.

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