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No Instituto Moreira Salles – Coração Indomável

Em um momento como esse, mesmo aqueles que não tiveram a oportunidade de ler o livro A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, estão cientes da história: a escultora G.H., uma mulher bonita da alta sociedade do Rio de Janeiro, entra no quarto da empregada que acabara de sair e tem uma experiência reveladora ao se deparar com uma barata. Ela mergulha nas profundezas da vida. Mas o que realmente importa é o que a autora faz com esse enredo: uma tentativa desesperada de ir além dos limites da linguagem verbal, através de uma escrita que se descontrói e se reconstrói a todo momento.

Como adaptar essa experiência limite para o cinema sem cair na simplória ilustração ou na mera repetição? Esse foi o desafio enfrentado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, conhecido por Lavoura arcaica e diversas minisséries marcantes de TV. O resultado é um filme peculiar, que busca dialogar de forma igualitária com o texto magnífico que o inspirou.

No início, somos recebidos pelo som de uma máquina de escrever e vemos um cigarro sendo aceso por uma mão feminina. São sinais visuais e sonoros que indicam claramente: estamos no mundo de Clarice, no universo de sua ficção. Em seguida, surgem imagens distorcidas, entre o figurativo e o abstrato, enquadradas de maneira mais “quadrada”, menos horizontal do que o comum. “Estou buscando”, diz a voz de G.H. (Maria Fernanda Cândido). “Tenho medo desse caos profundo.”

 

Uma jornada ética e estética

Desde o início, a intenção não é simplesmente reproduzir um relato, mas simular uma linguagem, uma jornada ética e estética. Ao longo das próximas duas horas, testemunharemos (e ouviremos) diversos métodos com esse propósito: encontrar a forma audiovisual de retratar a queda livre dessa mulher na angústia e na maravilha da existência.

“O que eu era?”, questiona a protagonista, desencadeando flashes de um apartamento elegante, com movimentos suaves de câmera e cores pastéis em destaque, principalmente um azul translúcido. É esse mundo refinado e harmonioso que está prestes a desmoronar, como sugerem as aparições fragmentadas da empregada negra, Janair (Samira Nancassa), movendo-se pelo apartamento vazio – uma figura estranha no ambiente, que mais tarde encara a câmera com uma expressão desafiadora contra sua posição subalterna.

Ao adentrar o quarto recém-desocupado da empregada, G.H. inicia uma jornada rumo ao abismo que abalará suas três identidades simultaneamente: a condição burguesa, a condição feminina e a condição humana. Luiz Fernando Carvalho e sua co-roteirista Melina Dalboni parecem determinados a explorar todas essas dimensões, especialmente a social-racial, apenas sugerida no livro. Não é à toa que na porta do quarto de Janair está colada uma bandeira de papel do Brasil com durex. É nesse país profundamente desigual que G.H. adentra ao atravessar aquela porta/portão.

Não é viável (em nenhum lugar) descrever todos os recursos audiovisuais que o diretor utiliza para recriar a jornada da protagonista aos abismos de seu próprio ser. Nem todos podem ser considerados bem-sucedidos, afinal, uma empreitada arriscada envolve a possibilidade de falha e erro. No entanto, alguns são especialmente inspirados.

 

O desenho e a barata

Ao deparar-se com um desenho feito a carvão por Janair na parede do quarto, G.H. experimenta um choque inicial. Parece ser uma pintura rupestre ancestral, um aviso, um feitiço, uma ameaça à sua posição de patroa e senhora. No filme, a descoberta é intercalada pela imagem de uma mão negra desenhando a carvão – um homem, uma mulher, um cachorro, vistos num mesmo enquadramento com a bandeira brasileira na porta entreaberta do quarto.

Todas essas questões condensadas ali: a herança escravista, a desigualdade, o ódio de classe, o medo de classe. G.H. tenta apagar o desenho com as unhas, com uma espátula, e por fim joga água na parede. A cena corta rapidamente para um flashback de G.H. mergulhando em uma piscina, antes de retornar ao seu horror no quarto. Esse movimento de vai e vem, entre o passado seguro e confortável da protagonista e seu presente agitado, será uma constante no filme.

O segundo choque, o encontro de G.H. com a barata, é uma experiência intensa que se situa entre a iluminação zen-budista (o satori) e o repentino horror de Roquentin diante de uma raiz disforme de árvore em A náusea, de Sartre. “O mundo inteiro vivo tem a forma de um inferno”, ela declara. Em um momento vertiginoso, G.H. percebe-se como parte do cosmos, respirando em conjunto com tudo o que está vivo.

 

O momento-chave

Como esse momento crucial é recriado no filme?

G.H. abre a porta do armário. Está lá dentro, contra a luz. Sua silhueta está visível. Um grito repentino, um recuo, os olhos cobertos por uma prateleira. Gritos, sons amplificados de asas de inseto. Horror estampado no rosto, na trilha sonora. Ela fecha o armário abruptamente e a tela fica escura. Ao reabri-lo, ela se aproxima do rosto. “Meu coração embranqueceu, como os cabelos embranquecem.” A cena muda para o rosto negro da empregada, como se fosse um contraplano, como se a empregada estivesse dentro do armário, encarando-a. “Grite, grite” – então vemos a imagem de G.H. gritando, sem som, seguida por um close da barata super ampliada como uma lança.

Há várias maneiras de montar/exibir a cena. Luiz Fernando Carvalho optou por essa, que considero extraordinária. A forma como a barata reaparece esporadicamente no filme também é digna de nota. Ela nunca é mostrada por completo, sempre fragmentada, como nos sonhos que queremos esquecer.

Um exemplo entre muitos. “Adeus, beleza do mundo”, G.H. diz, e vemos seu rosto se contorcendo, suas mãos apertando a pele e os cabelos desgrenhados, toda ela se deformando desesperadamente. A cena muda para a gosma saindo da barata, em um superclose. “Quero Deus naquilo que sai do ventre da barata”, declara a protagonista.

Em outras passagens, a barata é falada, verbalizada, evocando imagens aparentemente desconexas, que multiplicam os significados e associações de ideias. G.H. afirma: “Vista de perto, a barata é um objeto de grande luxo, uma noiva de preciosas joias”. E, em vez do inseto, vemos a protagonista nua, de costas para a câmera, deitando-se delicadamente na cama, como a “Vênus ao espelho”, de Velázquez.

Em resumo, a interação entre imagem, palavra, ruídos e música (Bach, Mahler, Ligeti, Schubert, Duke Ellington por Billie Holiday, o Hino à Bandeira…) é quase sempre surpreendente e instigante. A inquietude existencial e estética de Clarice Lispector encontra aqui um interlocutor à altura. E o cinema brasileiro ganha um grande filme.

https://ims.com.br/blog-do-cinema/a-paixao-segundo-g-h-por-jose-geraldo-couto/