É importante esclarecer que apesar do título sensacionalista brasileiro, o filme “O sequestro do papa” não envolve o sequestro de um papa. O longa dirigido por Marco Bellocchio, originalmente intitulado “Il rapito” (o sequestrado), aborda o caso Mortara, que ocorreu em 1858. Nesse evento, um menino judeu de seis anos chamado Edgardo Mortara (interpretado por Enea Sala) foi retirado de sua família em Bolonha e levado para Roma, onde seria catequizado e convertido em padre.
O pano de fundo histórico desse drama pessoal é o declínio dos Estados Pontifícios, onde o Papa (Pio IX, no caso) detinha poder absoluto sobre extensos territórios, principalmente na região central da Itália. Ele era conhecido como o “papa rei”. Nesse contexto, surge um movimento nacionalista pelo unificação da Itália, que eventualmente obterá sucesso em 1870.
Um Batismo Controverso
O garoto Edgardo Mortara é sequestrado por representantes do Vaticano sob a alegação de ter sido batizado como cristão, sem o consentimento de seus pais judeus. O sacramento foi ministrado de forma improvisada e secreta por uma empregada da família, que, ao ver o menino doente, temia que ele fosse condenado ao “limbo” por não ser batizado.
Baseado no livro “Il caso Mortara” de Daniele Scalise, Bellocchio tece habilmente os diversos aspectos desse episódio: o doloroso drama familiar, a confusão interna do menino, as relações delicadas entre o Vaticano e a comunidade judaica, o poder oscilante e, ao mesmo tempo, brutal do papado, e o avanço das ideias seculares.
Este não é um trabalho imediatista, não busca polemizar com o Papa Francisco ou endossar qualquer expansão agressiva do Estado de Israel, como sugeriram alguns de forma precipitada. A abordagem de Bellocchio é mais ampla, com uma visão humanista e libertária que valoriza a liberdade de pensamento e crença, além de repudiar a fusão entre religião e poder – seja qual for a religião ou poder em questão.
Personagens Complexos
Os dois principais personagens dessa trama são o menino Edgardo e o Papa Pio IX (interpretado por Paolo Pierobon). O primeiro cativa pela solidão e fragilidade, enquanto busca desesperadamente por algo em que acreditar, por um grupo ao qual pertencer, por um sentimento de acolhimento. Arrancado abruptamente da segurança familiar e das certezas de sua fé judaica, ele gradualmente se integra à “família cristã” e adota sua mitologia e crenças.
Pio IX, por sua vez, intensifica seu autoritarismo absoluto ao se sentir cada vez mais acuado pelo avanço histórico e por suas próprias culpas. Ambos são personagens trágicos à sua maneira, e a relação direta entre eles, representada em alguns momentos marcantes, é repleta de ambiguidades.
Com a segurança que apenas os mestres maduros possuem, Bellocchio constrói uma reconstituição de época sólida, permitindo-se voos poéticos a partir desse alicerce. Por exemplo, há um pesadelo em que o papa é circuncidado em sua cama por um grupo de rabinos. Além disso, destaca-se a cena notável, entre o kitsch e o sublime, em que Edgardo liberta Jesus, removendo os cravos que o prendiam à cruz. A iconografia sombria do catolicismo é explorada de forma dramática ao longo do filme.
Não é por mero apreço estético que o filme enfatiza as viagens noturnas de barco. Além de sua beleza misteriosa, esses deslocamentos carregam consigo algo de metafísico, de travessia espiritual.
O diretor habilmente manipula um jogo de paralelismos, por vezes contrastando de forma imediata, como nas cenas que alternam entre as cerimônias suntuosas no Vaticano e os rituais domésticos judaicos. Há também paralelos mais sutis e sugestivos, como nas cenas distantes, onde Edgardo se esconde sob a saia da mãe e sob a batina do Papa. Essas duas passagens dariam material para longas análises por parte de um psicanalista sensível. Vale ressaltar que a psicanálise é uma das paixões duradouras de Bellocchio, que em determinado momento de sua carreira chegou a co-escrever roteiros com seu analista.
Ao longo do desenvolvimento das várias linhas narrativas de “O sequestro do papa”, o melodrama prevalece, no sentido mais positivo da palavra, inclusive com um confronto entre irmãos colocados em lados opostos da história – uma abordagem comum em dramas históricos como “Bom dia, Babilônia”, dos irmãos Taviani. Bellocchio, apesar de falar sobre guerras, reinos e religiões, está, no fundo, interessado no homem, esse ser tão complexo, contraditório e vulnerável.
Filmes de Plástico
Uma mostra especial dedicada aos longas e curtas da produtora mineira Filmes de Plástico está em exibição até a próxima quarta-feira no Cinesesc em São Paulo. Essa mostra reúne os cineastas e produtores André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurilio Martins e Thiago Macedo Corrêa, proporcionando a oportunidade única de assistir a filmes como “Marte um”, de Gabriel Martins, “O dia que te conheci”, de André Novais, e “A felicidade das coisas”, de Thais Fujinaga, entre outros. Além disso, serão exibidos títulos marcantes de outros cineastas selecionados pelos membros da Filmes de Plástico, como “Alma corsária”, de Carlos Reichenbach, “Faça a coisa certa”, de Spike Lee, “Cabaré mineiro”, de Carlos Alberto Prates Correia, e “Trinta e cinco doses de rum”, de Claire Denis. Uma verdadeira celebração cinematográfica.
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