Baseado no enredo principal, o filme se desenvolve através das conversas desse grupo de amigos em diferentes ambientes, como festas, trabalho e bares da Lagoa. Sem usar recursos expositivos, o filme confia nos diálogos para nos mostrar os dramas do grupo, em cena após cena. A constante troca de palavras entre duas ou mais pessoas se torna o espaço onde podemos entender o contexto e também perceber uma disputa de interesses, convidando o espectador a se envolver intimamente. Ao retratar a vida cotidiana, as parcerias e conversas, o cinema de David Neves evita teorias e se concentra em um realismo menos simbólico e mais palpável, convidando-nos a analisar as relações por meio das cenas cheias de diálogos.
David Neves, um cineasta autodenominado carioca-diamantinense, fez parte do movimento cinemanovista e dirigiu cerca de 30 filmes, entre longas e curtas. Formado em direito pela PUC-Rio, ele logo abandonou a carreira jurídica para se dedicar ao cinema, participando das primeiras produções do Cinema Novo nos anos 1960. Além de crítico de cinema, Neves também contribuiu escrevendo roteiros para seus colegas ao longo de sua carreira, desempenhando um papel importante na formação da classe cinematográfica da época.
Além de ser cineasta e amante do cinema, David Neves tem uma ligação evidente com o ambiente que retrata em seus filmes. A naturalidade de seus personagens, totalmente integrada ao ambiente social em que vivem, elimina as estranhezas típicas das relações entre o Eu e o Outro. Neves filma aquilo que conhece e é reconhecido por seus objetos. A mise-en-scène orgânica resulta de uma harmonia entre o diretor e seus personagens.
O gesto simples de Neves equilibra perfeitamente o conteúdo com a forma. Lidando com temas controversos semelhantes aos de Nelson Rodrigues, como alcoolismo, sexo, traição e crime, o filme “Muito Prazer” não julga seus personagens, mas estabelece uma conexão afetiva que os compreende profundamente. A câmera é gentil com os personagens, explorando seus desejos sem reprimi-los, mostrando a empatia que se estende a todos os retratados.
Sem um narrador definido, o filme nos apresenta esse universo através das observações de adolescentes que trabalham na área. Como espectadores da vizinhança, os meninos comentam de forma perspicaz sobre os eventos ao seu redor. A mediação dos meninos, que compartilham suas impressões sobre os acontecimentos do grupo de amigos, é uma proposta formal: a câmera assume o ponto de vista desses jovens, proporcionando ao espectador uma perspectiva narrativa pouco delineada. Mesmo quando os meninos não estão em cena, essa abordagem de filmagem persiste ao longo do filme, garantindo uma visão amoral e curiosa, característica de uma criança quase adolescente. Ao nos fazer ver a vida desse grupo como os meninos a veem, Neves subverte o julgamento adulto em favor de uma curiosidade inocente ligeiramente maliciosa, encerrando o filme no momento em que a inocência cede lugar à astúcia.
Em um desfecho descendente, “Muito Prazer” retrata uma boemia em declínio. Mesmo durante a festa, os personagens não percebem que aquele mundo está prestes a desmoronar, e o rompimento da relação divertida e irônica entre os adolescentes e os adultos ocorre quando decidem assaltar Nádia. Das brincadeiras inocentes e piadas engraçadas, surge o choque causado pelo assalto. A magia do lugar que antes perdoava e entendia a todos desaparece, dando lugar a um cenário mais sombrio e real: o da compreensão. Sentados na calçada em frente ao escritório, os personagens encaram o incidente e refletem sobre suas próprias situações, desilusões e fraquezas, se despedindo do filme de forma simbólica. A encenação termina porque a ilusão desaparece e a dura realidade prevalece.
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