O ex-presidente inelegível mencionado anteriormente foi capaz de reunir e representar tudo de negativo na sociedade contemporânea – como o culto ao ódio e às armas, a defesa da tortura, a intolerância religiosa, a discriminação racial e de gênero, a desvalorização da ciência, das artes e do pensamento, a hostilidade em relação ao meio ambiente, e a tentativa de eliminar o que é diverso. Por outro lado, a atriz e diretora Helena Ignez representa exatamente o oposto disso: ela é uma força libertária que se posiciona contra todas as formas de opressão.
O tom enfático e claro do parágrafo acima reflete a intensidade e a explicitude quase educativa do novo filme de Helena, intitulado “A alegria é a prova dos nove”, que está estreando em São Paulo e no Rio de Janeiro nesta semana e será exibido em outras cidades posteriormente.
Neste novo filme, Helena interpreta o papel de Jarda Ícone, uma personagem autodeclarada como “artista, sexóloga e roqueira octogenária”. Como uma “xamã do prazer feminino”, Jarda oferece cursos, workshops e performances onde defende que o orgasmo feminino é uma fonte de autoconhecimento e libertação.
Jarda está no centro de uma série de situações, com homens e, principalmente, mulheres, buscando diversas formas de prazer e interação com o próximo. Essas interações não são movidas pelo egoísmo, mas sim pela comunhão e fraternidade. O filme retrata uma espécie de sociedade alternativa, aparentemente caótica, mas com a ideia central (já presente no trabalho anterior de Helena, “Fakir”) de que a sexualidade feminina é capaz de desestabilizar o poder patriarcal existente.
Diversidade de abordagens
A variedade de situações apresentadas no filme – desde passeios solitários em uma praia deserta até encenações de textos literários, de workshops sobre sexo até encontros com um padre progressista que defende os sem-teto e a legalização da maconha, de treinos em uma academia de boxe até ocupações urbanas – reflete a postura firme e clara da cineasta diante de diversas realidades, incluindo a celebração da natureza, o apoio a substâncias que expandem a mente e a solidariedade com grupos oprimidos, como indígenas e palestinos. Helena não hesita em expressar suas opiniões.
Com exceção dos “milicos franquistas” que abusaram da jovem Jarda (interpretada por Djin Sganzerla) em um oásis no Saara, todos os personagens do filme buscam explorar sua sexualidade de maneira livre e respeitosa, sem reprimir ou controlar o outro. Heterossexuais, gays, lésbicas, trans, bissexuais, não-binários, assexuados – todas as formas de amor são válidas.
O passado transcende
Os flashbacks da viagem hippie de Jarda pelo Saara nos anos 70, ao lado de seu parceiro Lirio (representado na juventude por Guilherme Gagliardi), são entremeados por cenas breves do documentário em 16mm “Fora do baralho” (1971), de Rogério Sganzerla, que registrou a jornada do casal Helena-Rogério pela região. No filme atual, Lirio (agora interpretado por Ney Matogrosso) é o ex-namorado e melhor amigo de Jarda, mantendo um relacionamento com o músico Beto (Dan Nakagawa).
Ao revisitar e reorganizar essas memórias, a cineasta demonstra fidelidade aos ideais libertários da juventude, ao mesmo tempo em que busca transcendê-los ou adaptá-los para um novo contexto. Ela poderia afirmar, como Paulinho da Viola: “Eu não vivo no passado; o passado vive em mim”.
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