Search

A expressão verbal

A exposição Coutinho 90, presente no IMS Paulista e IMS Poços, está em seu último mês em exibição.

Já se passaram 10 anos desde que Coutinho não está mais fisicamente presente. Décadas difíceis, que certamente causariam uma agitação eletrizante no documentarista. Ou, talvez, um tipo diferente de inquietação, menos construtiva, diante de nós, indivíduos dominados pelo impacto das redes sociais. Estamos nos expressando de uma maneira cada vez mais pasteurizada, embalada a vácuo, sem a autenticidade do que é verdadeiro ou espontâneo. Não há como saber como ele reagiria a isso e ao mundo ao seu redor. No entanto, desde 2014, continuo ouvindo resmungos e seus habituais palavrões.

A palavra era uma das principais motivações por trás de seus filmes – os que conhecemos e os que nunca foram realizados. Não a palavra em seu estado puro, mas a palavra moldada na boca de quem a pronuncia. Por exemplo, Coutinho contou que a palavra “sobejo”, raramente usada neste século, era (ou ainda é?) comum em uma região de Minas Gerais. Certos usos da língua portuguesa em áreas economicamente isoladas do Brasil o fascinavam. Se observarmos atentamente sua obra, podemos identificar discursos ornamentados até mesmo em seus programas para o Globo Repórter. Em “Seis dias em Ouricuri”, um dos personagens descreve a escassez de alimentos no sertão com as seguintes palavras: “Panela com dois, três dias que não ferve…”. E logo em seguida: “Nós temos que buscar pelas entrelinhas”. Nestes exemplos, temos não apenas palavras eruditas, mas também expressões populares que surgem espontaneamente. O mesmo personagem diz que “nós ficamos sem nada, com a boca aberta, como um passarinho novo”. As figuras de linguagem abundam na conversa do brasileiro.

Comecei a trabalhar como assistente de Coutinho em 2009, durante a preparação do que viria a ser o filme “As canções”. Naquela época, a ideia para o projeto era completamente diferente. Inspirado pela experimentação iniciada em “Jogo de Cena”, Coutinho planejava um filme arriscado, totalmente baseado na força da palavra e da fala. A ideia era compilar textos de diversas origens – desde bulas de remédios até peças de Shakespeare, de guias de comportamento feminino do início do século XX a transcrições de programas de TV. Estes textos seriam lidos e interpretados por atores cuidadosamente selecionados, de forma a, nas palavras do diretor, “elevar o ordinário e o cotidiano assim como banalizar o sublime, fazendo com que textos sublimes possam assumir uma interpretação trivial, revestindo-se de uma linguagem comum”.

Passamos meses garimpando livros antigos e esquecidos nos camelôs da estação Carioca, no Rio de Janeiro. Qualquer tipo de texto, desde instruções de segurança em aeronaves comerciais até poemas líricos, poderia se tornar material para os atores. A ideia de que os assentos dos aviões são flutuantes poderia ser lida como um verso poético. Ou um poema poderia ser recitado como um anúncio de supermercado. A imaginação de Coutinho não conhecia limites, ao contrário da vida prática. Quem o conheceu verdadeiramente certamente presenciou um de seus momentos delirantes, emendando ideias absurdas como se estivesse sob efeito de anestesia, instantes antes de desmaiar. Para quem não teve a oportunidade de conhecê-lo de perto, basta assistir ao seu primeiro curta de ficção, “Le Téléphone”, produzido enquanto estudava no IDHEC em Paris. O absurdo gerado pela palavra – o mal-entendido, o equívoco, o erro de interpretação – era uma fonte de prazer para Coutinho.

Quanto ao filme que não foi realizado, a ideia parecia promissora, mas transformá-la em uma produção cinematográfica era outra história. Devo admitir que fui uma das pessoas que o desencorajou a prosseguir, mesmo depois de ter feito os primeiros contatos com alguns atores excepcionais. Peço desculpas, mas me justifico com os resultados dessa decisão: “Um dia na vida”, o filme que não era exatamente um filme, mas sim material de pesquisa para um futuro filme (aquele que nunca foi concretizado); e “As canções”, cujo dispositivo o próprio autor considerava estúpido, desprovido de originalidade, mas que ele adorava e, eventualmente, realizou.

https://ims.com.br/blog-do-cinema/coutinho-90-por-laura-liuzzi/