Desafortunadamente na acirrada “corrida do Oscar”, o filme coreano-americano Vidas passadas, da estreante Celine Song, tem o mérito notável de ser simples sem ser simplista. Sua expressividade reside em sua delicadeza e na sua recusa em ser estridente.
Através de um artifício engenhoso de roteiro, a primeira cena instiga a curiosidade e estabelece uma das ideias fundamentais do filme: a de que sempre é possível inventar histórias alternativas para cada indivíduo ou grupo de indivíduos. Em um bar, durante a madrugada, três pessoas na faixa dos trinta anos estão sentadas lado a lado: um asiático, uma asiática e um “ocidental”. De uma mesa a certa distância, um casal não identificado especula sobre quem eles são e que tipo de relação têm entre si. Eles formulam diversas hipóteses, quase como espectadores diante de uma tela no início de um filme. Ou seja: como nós.
A mesma cena é revisitada perto do final, quando já sabemos quem eram os três personagens e ouvimos a conversa que tiveram ali. É como se o filme tivesse desenvolvido uma das hipóteses levantadas. Até chegar a essa parte novamente, a narrativa terá retrocedido em três etapas: 25 anos antes, 24 anos antes, doze anos antes…
Rascunho de romance
Tudo começa em Seul, quando o menino Hae Sung e a menina Na Young são colegas de escola e quase namorados. No entanto, esse esboço de romance é interrompido quando Na Young emigra com a família para o Canadá e muda seu nome para Nora. Corta para doze anos depois, quando Nora (Greta Lee), uma aspirante a escritora e dramaturga, está participando de uma residência artística perto de Nova York, enquanto do outro lado do mundo Hae Sung (Teo Yoo) cumpre seu serviço militar.
Não é conveniente revelar as outras etapas dessas vidas paralelas, conectadas em certo ponto através da internet e depois em um encontro “presencial”. Apenas podemos dizer que há um jogo delicado em torno dos conceitos de acaso e destino, encapsulados na expressão coreana “In-yun”, que, segundo Nora, vem do budismo e significa algo como destino ou providência, ecoando encontros e desencontros de vidas passadas.
No entanto, o que poderia ter a seriedade de uma parábola filosófica se dissolve na suavidade e na ironia. Ao conhecer um jovem judeu americano na residência artística, Nora, após explicar o “In-yun”, comenta que “é algo que os coreanos dizem para seduzir alguém”.
É com essa leveza de espírito que é narrada uma história de amor não concretizado, como tantas outras encontradas na literatura e no cinema. Vidas que poderiam ter sido e que não foram.
Ciente dessa tradição, Celine Song brinca com os símbolos recorrentes dos filmes de amor, ocasionalmente transfigurando-os com ironia ou por pequenos deslocamentos. Um exemplo: em seu passeio por Nova York, Nora e Hae Sung chegam a um parque de diversões. No entanto, em vez da típica cena com os amantes se divertindo na montanha-russa ou saboreando algodão doce, eles se sentam em frente a um carrossel melancólico e meio deserto e conversam sobre as vezes em que Nora esteve ali com seu marido, Arthur (John Magaro). Quando fazem um passeio de barco pelo Hudson, eles passam pela estátua da Liberdade, mas Hae Sung comenta: “Ela está de costas para nós”.
Contraste cultural
Há sempre um equilíbrio entre o real e a ficção. Enquanto está na cama com Nora, Arthur (também escritor) imagina a situação como uma narrativa literária, em que ele desempenha o papel do marido inoportuno no caminho dos amantes. A ironia é amarga, mas mantém a leveza e o humor.
O tema do contraste cultural Coreia-EUA não é secundário. Está no cerne do drama. Em determinado momento, Nora atua como intermediária entre Arthur e Hae Sung. Ela comenta ao marido: “Ele é muito coreano. Sinto-me tão não-coreana quando estou com ele. Mas também, de alguma forma, mais coreana”.
A progressão narrativa é equilibrada entre a decupagem clássica “ocidental” e momentos de contemplação e silêncio característicos de certos filmes asiáticos, nos quais os “tempos mortos” ganham vida e significado.
No entanto, o cinema é essencialmente imagem, e em Vidas passadas, há uma que resume todo o drama narrado: é a bifurcação em um bairro periférico de Seul, em que os dois amigos se separam, o pequeno Hae Sung subindo a ladeira à esquerda e a pequena Na Young subindo a escadaria à direita. Essa cena retorna rapidamente durante uma conversa entre os dois, um quarto de século depois. É uma imagem-tempo, um verso visual, uma erupção do inconsciente. É o cinema da poesia emergindo no meio da prosa.
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