O conteúdo do filme “A substância”, dirigido por Coralie Fargeat, tem sido interpretado como uma crítica feminista à indústria da busca pela juventude eterna. No entanto, o que mais chama a atenção, em minha opinião, é a maneira como o filme aborda um tema universal e intemporal – a obsessão pela eterna juventude – com um olhar extremamente contemporâneo.
Nesse sentido, a história gira em torno de Elisabeth Sparkle (interpretada por Demi Moore), uma ex-estrela de cinema quase sexagenária que comanda um programa de dança aeróbica na televisão. Após ser substituída por uma atriz/dançarina mais jovem, Elisabeth decide se submeter a um experimento científico radical para criar uma versão mais jovem de si mesma, com quarenta anos a menos (interpretada por Margaret Qualley).
O filme é marcado por sua narrativa desigual e arbitrária, que transita por diversos gêneros – do drama existencial à sátira corrosiva, passando pelo terror -, nem sempre mantendo a mesma eficácia. A primeira cena é um exemplo de síntese impressionante, que consegue transmitir uma grande quantidade de informações e emoções com recursos mínimos: através de um plongée vertical, testemunhamos a ascensão e queda de Elisabeth Sparkle, desde sua glória na Calçada da Fama até sua decadência e quase esquecimento.
Estética da distorção
No entanto, a sutileza da abertura dá lugar a uma expressão quase aleatória de expressionismo, que utiliza recursos visuais e sonoros de distorção de forma um tanto arbitrária para enfatizar sua narrativa. Um exemplo disso são as cenas em que o diretor do programa de exercícios (interpretado por Dennis Quaid) é mostrado em close com uma lente grande angular, criando uma imagem grotesca e perturbadora.
A caricatura do produtor – um homem extremamente machista e rude – é um dos pontos em que a diretora parece forçar a perspectiva feminista. Da mesma forma, a ênfase nos closes dos corpos lisos das jovens dançarinas poderia parecer voyeurismo masculino, se não fosse transformado em algo oposto, tornando todas aquelas bundas de collants fastidiosas. São corpos deserotizados, como personagens de um videogame.
No entanto, há algo de fascinante nisso: a percepção de que qualquer coisa se torna monstruosa quando ampliada exageradamente em primeiro plano: um camarão entrando na boca, uma azeitona perfurada por um palito… Embora não seja uma revelação surpreendente, funciona como uma introdução para o cerne do filme: a transformação radical do corpo humano. O horror reside no orgânico, visto de uma perspectiva específica.
No âmago, o filme aborda um tema semelhante ao de “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde: a deterioração moral que acompanha a busca pela juventude física eterna. A diferença é que, enquanto no livro de Wilde o milagre é obtido por meio de um feitiço sobrenatural, em “A substância” a maravilha é supostamente criada pela ciência.
Influências de Kubrick e comédia
Essa última abordagem aproxima o filme do universo bioficcional de David Cronenberg, embora suas referências estéticas pareçam estar mais ligadas a Kubrick. Existem referências mais ou menos explícitas a obras como “O Iluminado” (com seus corredores longos e sangue inusitado), “Laranja Mecânica” (os closes mencionados e o frenesi de violência) e até “2001” (a icônica abertura com “Also Sprach Zarathustra”, de Richard Strauss).
No trecho final – os últimos vinte minutos – “A substância” se transforma em uma comédia de terror, talvez como forma de alívio após uma sequência de brutalidade sangrenta quase insuportável (no confronto entre a protagonista e sua versão jovem).
No geral, é um filme que merece ser assistido, contanto que não seja levado muito a sério, seja em termos filosóficos ou de qualidade cinematográfica. Provavelmente será lembrado no cinema como uma curiosidade de sua época, além de ser um momento corajoso na carreira artística e pessoal de Demi Moore, tão bela e atraente quanto em seu auge como ícone sexual dos anos 1990.
https://ims.com.br/blog-do-cinema/a-substancia-por-jose-geraldo-couto/